quarta-feira, 9 de outubro de 2013

TEMA PARA DISSERTAÇÃO


‘Os protestos no século 21′, um texto de Roger Cohen

PUBLICADO NO ESTADÃO DE 26 DE JUNHO
ROGER COHEN*
Os brasileiros têm uma expressão política corriqueira: “Vai acabar em pizza”. Uma coisa que acaba em pizza é uma coisa que não dá em nada, nadinha, coisa nenhuma. A expressão é habitualmente usada para a conclusão previsível de investigações judiciais de crimes do colarinho branco praticados com impunidade pela gente poderosa do Brasil.
A impunidade é uma das questões que estão animando os protestos de massa por todo o Brasil, que começaram com a ira contra a elevação do preço dos transportes. Um padrão emergiu. De Sidi Bouzid, na Tunísia, onde um bate-boca sobre um carrinho de frutas desencadeou a Primavera Árabe, a Istambul, onde um sublevação teve origem nos planos de construir um shopping num parque, essas erupções animadas por hashtags do Twitter têm traços em comum.
Pequena faísca, grande conflagração; líder desorientado, movimento sem liderança; poder estatal verticalizado e rígido, protestos horizontais ágeis; autoridade severa, juventude endiabrada; força do Estado, flexibilidade do Facebook; repressões policiais, reagrupamentos ágeis; acusações de conspiração, respostas irônicas.
Basta é basta. Fidel Castro passou anos em Sierra Maestra preparando sua revolução. O Twitter dispensou isso. Ou não? Uma questão central desses movimentos movidos a mídia social é, nas palavras de Zeynep Tufekci, professor da Universidade da Carolina do Norte, “como se vai de um ‘não’ para um ‘vão’?”
Em outras palavras, as erupções cujo slogan comum poderia ser “basta é basta!” são boas como protesto e resistência, mas não tão boas para definir objetivos ─ sejam eles políticos, sociais ou econômicos ─ e se organizar para alcançá-los.
Sua empolgação é negativa. Elas tendem a fracassar no afirmativo. Elas não têm líderes. Não há um carro de som. As agendas mais parecem uma linha de tempo do Twitter ─ fascinante, mas difusa ─ do que expressões coerentes de um objetivo. Não há um Martin Luther King ou um Nelson Mandela ─ ou Tancredo Neves e Lula (entre outros) ─ liderando a luta pela democracia brasileira há três décadas.
Como disse Wael Ghonim, ex-executivo do Google, sobre a revolução egípcia: “Nossa revolução é como a Wikipédia. Todos contribuem para o conteúdo, mas você não sabe o nome de ninguém.”
Da Tunísia ao Cairo houve um objetivo nítido: a deposição de um déspota. Foi só depois que esse objetivo foi concretizado é que a fraqueza de um movimento sem líderes tornou-se visível e grupos que alardeavam sua organização preencheram o vazio. Eles não foram capazes, contudo, de saciar a sede de renovação de suas nações.
Na Turquia, o movimento contra a construção do shopping transformou-se numa porção de coisas quando a polícia expulsou os ocupantes do Parque Gezi. Ele passou a ser sobre a guinada autocrática de um líder conservador no poder há 11 anos, sobre a invasão das vida privadas pelo Estado, sobre o controle que enfraquece a mídia e a maneira como o partido governista, o da Justiça e Desenvolvimento (AKP), vê inimigos por toda parte.
O movimento passou a ser também sobre como a investida do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan contra a Turquia secular de Mustafá Kemal Ataturk errou o alvo: se não havia razão para uma jovem religiosa não frequentar a universidade usando um véu, não havia razão para políticos do AKP vociferarem contra muçulmanas de biquíni.
Basta é basta. No Brasil, a ira se volta mais contra toda a classe política do que contra a presidente Dilma Rousseff. Ela tem a ver com a maneira como os políticos vivem como mandarins, com privilégios, escândalos de compra de votos e impunidade. Tem a ver com o desvio de recursos: mais de US$ 13 bilhões em novos estádios e preparativos para a Copa de 2014, enquanto necessidades básicas de saúde, educação e transporte continuam não atendidas. Tem a ver com a violência policial quando acaba a tolerância com a injustiça.
Mudança no jogo. Esses movimentos irromperam em duas das principais potências emergentes do século 21, cujas economias vêm crescendo em ritmo acelerado. Não pensem que isso é coincidência. Turcos e brasileiros, particularmente os jovens, reagem a um senso de forças globais além de seu controle; eles estão lembrando os líderes de consultar e prestar contas e dizendo aos financistas que justiça social importa.
Quando eles se juntam, afirmam uma humanidade comum contra o desenvolvimento atomizador e o shopping center globalizado. Será que conseguirão passar do “não” ao “vão”? Isso demandará uma organização numa escala jamais vista, decisões sobre objetivos e líderes. Eu não vejo isso tudo terminando em pizza. De Túnis a Istambul, do Cairo a São Paulo, alguma coisa está ocorrendo. O medo acabou. Isso já é, em si, uma mudança do jogo. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
*ROGER COHEN É COLUNISTA DO JORNAL AMERICANO THE NEW YORK TIMES

ALTERIDADE(latim- Alteritas, Alietas; inglês – otherness; francês - Altérité; Alemão – Anderheit, Anderssein; italiano – Alterita). Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. A alteridade é um conceito mais restrito que a diversidade e mais extenso que a diferença. A diversidade pode ser também puramente numérica, não assim a alteridade(cf. ARISTÓTELES, Met. IV, 9, 1.018 a 12). Por outro lado, a diferença implica sempre a determinação da diversidade, enquanto a alteridade não a implica. Aristóteles considerou que a distinção de um gênero em várias espécies e a diferença dessas espécies na unidade de um gênero implica uma Alteridade inerente ao próprio gênero: isto é, uma Alteridade que diferencia o gênero e o torna intrinsecamente diverso(Met. V, 8, 1.058 a 4 ss). Do conceito de Alteridade valeu-se Plotino para assinalar a diferença entre a unidade absoluta do primeiro Princípio e o intelecto, que é a sua primeira emanação: sendo o intelecto ao mesmo tempo pensante e pensado, intelecto enquanto pensa, ente enquanto é pensado, é marcado pela Alteridade, além de sê-lo pela identidade(Emm., V, I, 4). De modo análogo, Hegel utiliza o mesmo conceito para definir a natureza com relação à Idéia, que é a totalidade racional da realidade. A natureza é “ a ideia na forma de ser outro(Anderssein)”.Desse modo, é a negação de si mesma é exterior a si mesma: de modo que a exterioridade constitui a determinação fundamental da natureza(Enc. §247). Mas, de modo mais geral, pode-se dizer que, segundo Hegel, a Alteridade acompanha todo o desenvolvimento dialético da Ideia, porque é inerente ao momento negativo, intrínseco a esse desenvolvimento. De fato, tão logo estejam fora do ser indeterminado, que tem como negação o nada puro, as determinações negativas da Ideia tornam-se, por sua vez, alguma coisa de determinado, isto é, um “ser outro” que não aquilo mesmo que negam. “A negação – não mais como o nada abstrato, mas como um ser determinado e um algo – é somente forma para esse algo, é um ser outro” (Enc., § 91).
Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa

al.te.ri.da.de
sf (lat alter+dade) Estado ou qualidade do que é outro, distinto, diferente.

(Filosofia) qualidade, condição, estado de ser o outro
(Filosofia) concepção que parte do pressuposto básico de que todo o homem social interage e interdepende de outros indivíduos

Um conto muito bom



A Causa Secreta
De Machado de Assis

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o tecto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha.
Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que Estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa De saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.
Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois.
Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.
A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho.
No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo Beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da Praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.
— Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.
— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento.
Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.
— Conhecia-o antes? Perguntou Garcia.
— Não, nunca o vi. Quem é?
— É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouveia.
— Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dous saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouveia, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
— Cuidado com os capoeiras! Disse-lhe o dono da casa, rindo-se.
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na Rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá- lo ali perto, em Catumbi.
— Sabe que estou casado?
— Não sabia.
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.
— Domingo?
— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.
— Não, respondeu a moça.
— Vai ouvir uma ação bonita.
— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.
Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada.
Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco.
" Singular homem!" pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
— Valeu? Perguntou Fortunato.
— Valeu o quê?
— Vamos fundar uma casa de saúde?
— Não valeu nada; estou brincando.
— Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estreia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia
Aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as
Operações, e nenhum outro curava os cáusticos.
— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães.
Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para
Casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.
— Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer.
Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
— Deixe ver o pulso.
— Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.
— Que é? Perguntou-lhe.
— O rato! O rato! Exclamou a moça sufocada e afastando-se.
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera
Um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda.
Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.
— Mate-o logo! Disse-lhe.
— Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:
— Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
— Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre.
Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um
bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.
Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte.
Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.
—Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.
Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo.
Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até
que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta.
Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um
livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe
não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

FIM